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quinta-feira, 27 de outubro de 2016
Iêmen: A guerra esquecida
Retalhado entre grupos opostos e facções terroristas, alvo de bombardeios aéreos constantes, com a economia em frangalhos, hospitais destruídos e uma crise de fome e desnutrição que está matando suas crianças, o Iêmen agoniza, mas pouca gente vê. Apesar de a situação humanitária no país da Península Arábica ser uma das mais severas do mundo, a guerra, que já dura um ano e meio, tem pouca visibilidade. “Diferentemente de conflitos como o da Síria, o Iêmen não atrai o mesmo nível de atenção internacional”,
Entre as razões apontadas, está o baixo valor estratégico do Iêmen para os grandes poderes mundiais. Segundo o instituto, apesar de o terrorismo gestado por lá historicamente ter sido um desafio para os governos ocidentais, a guerra limitou significativamente a capacidade desses grupos extremistas de viajar para fora do país, assim como o acesso de seus apoiadores ao território iemenita. Por isso, o país não é um motivo de preocupação tão grande quanto o Iraque ou a Síria, por exemplo.
O bloqueio por mar, terra e ar estabelecido pela coalizão saudita – que luta contra os rebeldes houthis – impede também que os iemenitas deixem o país. Com isso, não se gerou uma crise de refugiados como no caso da Síria, outro fator que contribuiu para a invisibilidade do conflito “As pessoas estão presas no Iêmen, então não há filas de refugiados em países vizinhos onde os repórteres podem vê-los e chamar a atenção para o conflito”, pontua Charles Schmitz, especialista em Oriente Médio e Iêmen do Instituto do Oriente Médio em Washington e professor da Universidade Towson em Baltimore.
Outra dificuldade apontada por Schmitz é a falta de liberdade de imprensa. Repórteres iemenitas têm sido presos e atacados por ambas as partes do conflito, e jornalistas estrangeiros não conseguem ter acesso ao país devido ao bloqueio e à falta de infraestrutura. “Seria muito difícil viver no Iêmen, mesmo se um repórter conseguisse chegar ao país”, diz o professor. E completa: “A mídia no Iêmen é toda de propaganda de guerra. Reportagens de verdade não são feitas. Se os repórteres derem as notícias verdadeiras, são atacados por não apoiarem a causa da guerra”.
Segundo a ONU, já são mais de 6,6 mil mortos desde o início do conflito – 3,8 mil deles eram civis, e 6,7 mil ficaram feridos. Ao menos 620 crianças morreram e 758 foram mutiladas desde meados de 2015, afirma a organização.
Em um relatório publicado em Genebra, o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos denunciou recentemente os ataques contra mercados e instalações médicas e escolares, o uso de minas terrestres e de bombas de fragmentação e o recrutamento de crianças para transformá-las em soldados. O organismo pediu também a criação de uma comissão independente para apurar as violações de ambos os lados. O pedido foi negado pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, que determinou que os abusos sejam investigados internamente. A decisão desapontou ativistas e especialistas, que são céticos em relação a uma solução próxima para o conflito.
ENTENDA O CONFLITO
A tensão no Iêmen começou a se acirrar na Primavera Árabe, em 2011, quando os rebeldes xiitas houthis participaram de protestos contra o então presidente e se aproveitaram de um vácuo no poder para expandir seu controle territorial em algumas regiões do país. O grupo rebelde é respaldado pelo Irã, também xiita, e reivindica mais participação no poder.
Após anos expandindo seu controle, em setembro de 2014 os houthis conquistaram a capital, Sanaa. No início de 2015, o presidente Abd Rabbo Mansur Hadi foi forçado a fugir para outra cidade do Iêmen e depois para a Arábia Saudita. Os houthis dissolveram o Parlamento e formaram um conselho presidencial para governar.
Em março de 2015, a Arábia Saudita passou a liderar uma aliança árabe para conter o avanço dos houthis. A aliança tem o apoio dos Estados Unidos e faz bombardeios aéreos constantes às áreas dominadas pelos rebeldes. No entanto, até hoje não conseguiu recapturar Sanaa.
Com o bloqueio aéreo e marítimo imposto pela coalizão saudita, o Irã consegue enviar somente pequenas quantidades de armamentos e outros materiais de ajuda para os Houthis. "Claramente a quantidade de material que o Irã fornece aos Houthis é muito limitado, o que mostra que os Houthis não são totalmente dependentes do Irã”, diz o professor Charles Schmitz. Segundo ele, os Houthis se abastecem de armamentos por meio de contrabandistas comuns, que não se importam com a origem do que entregam nem com quem está comprando. Por isso, é provável inclusive que armas sauditas caiam nas mãos dos Houthis, por meio desses contrabandistas.
Além dos houthis, apoiados pelo Irã, e do presidente Hadi, apoiado pela Arábia Saudita, a disputa de poder no Iêmen inclui tribos sunitas, a Al-Qaeda e até o Estado Islâmico.
COLAPSO DA ECONOMIA
O Iêmen, que já era um dos países mais pobres do mundo, viu sua economia entrar em colapso ainda maior com o surgimento da guerra. A produção e exportação de gás e petróleo – principal motor da economia – parou, e o desemprego e a inflação cresceram. As reservas do banco central estão precariamente baixas por causa dos gastos com a guerra. De acordo com um relatório do Banco Mundial divulgado pela Reuters, o custo da destruição da infraestrutura do Iêmen e as perdas econômicas superam os US$ 14 bilhões até agora.
FOME E DESNUTRIÇÃO
Altamente dependente de importações de alimentos, o Iêmen sofre com um quadro de fome e desnutrição há décadas. Mesmo antes da escalada de violência, o país tinha milhões de pessoas famintas e um dos maiores níveis de desnutrição no mundo. A guerra acentuou muito esse problema, e as imagens atuais de crianças iemenitas esqueléticas lembram as cenas da epidemia de fome na Somália na década de 1990.
“Todo o arroz do Iêmen e 90% do trigo são importados. A coalizão saudita impôs um bloqueio para prevenir que armas fossem para os houthis em Sanaa, mas sem importação e exportação, a economia estagnou em uma recessão severa com escassez de comida e inflação alta”, diz Charles Schmitz, do Instituto do Oriente Médio.
Segundo o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, ao menos 7,6 milhões de pessoas, incluindo 3 milhões de mulheres e crianças, sofrem de desnutrição e falta de água potável. De acordo com a Unicef, 192 centros de tratamentos de má nutrição pararam de funcionar por causa do conflito.
Além do bloqueio à entrada de alimentos importados, a destruição de rotas de comércio e fazendas por ambas as partes em luta criou uma escassez de produtos no mercado e levou os alimentos básicos a serem vendidos a preços exorbitantes. A ajuda humanitária também encontra grande dificuldade para chegar, devido ao alto preço dos combustíveis, aos bombardeios aéreos e à violência em terra.
O custo elevado das mercadorias nas áreas de combate obriga os iemenitas a viajarem longas distâncias fora de algumas cidades para comprar produtos por um preço melhor. Muitas caminham por montanhas cheias de trincheiras e voltam com grandes cargas de comida em suas costas.
Segundo um relatório da ONG Oxfam, moradores de uma das cidades que estão na linha de frente da guerra disseram que não havia vegetais nem fórmulas infantis no mercado e que em algumas áreas o preço dos alimentos aumentou 200%. “Em fevereiro [de 2016], quando perguntamos aos moradores da cidade de Taiz se eles tinham alguma preocupação de segurança na hora de comprar comida, a lista era longa: disparos de atiradores, bombardeios, batalhas repentinas, assédio nos postos de controle, abuso físico e verbal, insultos e humilhações”, diz o documento.
“Muitos disseram que comem apenas uma refeição por dia para deixar comida para seus filhos. Alguns afirmaram que ficam sem comer por 36 horas seguidas nos momentos mais intensos do conflito”, prossegue o relatório.
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